'Guerreiros do Sol' repensa cangaço a partir da mulher e denuncia violência do sertão
Por Leonardo Saches/ Folha Press em 10/06/2025 às 18:36

Sob o sol que faz arder o sertão nordestino, uma disputa entre um coronel e um cangaceiro mancha a terra de sangue. Tiros voam de um lado para o outro, embora sejam apenas uma amostra mais óbvia de uma violência que toma diversas formas.
Armas são o menor dos problemas da protagonista de “Guerreiros do Sol”, castigada pela miséria, a injustiça e as palavras disparadas pelos homens ao redor, num sertão em que a figura do “cabra macho”, montado no cavalo e com revólver na cintura, é incontestável.
Terceira novela original do Globoplay, plataforma de streaming da Globo, a trama de 45 episódios estreia nesta semana construindo uma ponte entre as violências do presente e aquelas do sertão nordestino entre os anos 1920 e 1930, época em que Lampião e seu bando reinavam.
Ao seu lado, Maria Bonita também aterrorizava os sertanejos, num relacionamento com traços de abuso, segundo muitos pesquisadores, embora romantizado. Tornaram-se figuras míticas, um Bonnie e Clyde brasileiro, e agora inspiram o casal protagonista de “Guerreiros do Sol”, Rosa e Josué papéis de Isadora Cruz e Thomás Aquino.
“O cangaço é um movimento muito ímpar, que só aconteceu naquele lugar, naquela época. Vimos ali a possibilidade de fazer um melodrama”, dizem George Moura e Sérgio Goldenberg, autores da novela, que já assinaram séries como “Onde Nascem os Fortes” e “Amores Roubados”.
“É para entreter as pessoas, mas também para dizer que aquele Brasil arcaico, palco de uma guerra, dialoga muito fortemente com o nosso presente. Guerreiros do Sol é uma tentativa de olhar para o passado para compreendermos as contradições de hoje. Por isso descrevemos a novela como uma história de amor ambientada numa guerra, a guerra de formação do Brasil moderno”, afirma Moura.
“Guerreiros do Sol” acompanha um amor que floresce em meio à aridez do sertão nordestino, com suas desigualdades e a ausência do Estado. Vizinha de um rico e poderoso latifundiário, a mocinha Rosa decide se casar com ele, ciente de que a vida não lhe reserva grandes coisas e apesar de estar apaixonada por Josué, igualmente pobre.
Eles deixam escapar uma dança num forró, porém, e o ciúme impele o coronel encarnado por José de Abreu a travar uma guerra contra Josué. Ameaças se transformam em morte e, para vingar uma desgraça pessoal, o mocinho e seus irmãos se tornam cangaceiros.
Não é um spoiler dizer que a protagonista e narradora logo vai pegar em armas também, em busca de suas próprias vinganças. Assim, Rosa vai se aproximando de Maria Bonita uma mulher forte num mundo violentamente misógino, que chama a atenção pela beleza.
“Guerreiros do Sol” tomou emprestado o nome e a pesquisa do livro de Frederico Pernambucano de Mello, historiador que serviu de consultor da novela. Moura e Goldenberg, porém, caminharam rumo à ficção, justamente porque “cada opinião dada entre os especialistas do cangaço acende uma centelha”, dizem, em referência às versões díspares do movimento e da relação entre Lampião e Maria Bonita.
“Rosa tem uma visão crítica sobre o cangaço e a sua participação naquilo, mas ela e Josué, apaixonados, foram impelidos a se tornarem cangaceiros, para sobreviver mesmo”, diz Moura.
“Eu não entrei no cangaço por maldade minha, mas pela maldade dos outros”, sintetiza bem o mocinho, num dos episódios, pegando emprestada a fala atribuída a Lampião, perseguido na juventude pelos coronéis e as forças policiais corruptas do interior de Pernambuco.
Já Rosa foi, claro, pensada à imagem de Maria Bonita. Mas foi a cangaceira Dadá, Isadora Cruz conta, quem mais a inspirou. Única mulher a empunhar um fuzil no bando de Lampião, ela foi casada com Corisco, o segundo no comando, e ganhou a alcunha de Suçuarana do Cangaço. Apesar do sadismo do marido, Dadá com frequência intervia para poupar a vida de inocentes.
“A Rosa traz um novo olhar sobre uma história muito masculina, muito violenta”, diz a paraibana, que quer desafiar o arquétipo da mocinha de novela. “Existe nela uma sensibilidade para os problemas da época. Queremos mostrar os dois lados da moeda, a dicotomia do cangaço, porque até hoje há quem ame e quem odeie. Como a política, que tem polarizado e dividido tanto a sociedade.”
Não é apenas no bando de Lampião que as mulheres do folhetim encontram sua voz, porém. Alinne Moraes e Nathalia Dill são outras que encarnam figuras à frente de seu tempo, gerando debates sobre educação e sufrágio. “Voto feminino para quê?”, reclama o personagem de Daniel de Oliveira, filho do coronel, ao ler o jornal. “Mulheres são cidadãs, tanto quanto você”, responde a dona de casa culta e gentil vivida por Moraes.
Dupla masculina, Moura e Goldenberg contaram com um time de colaboradoras mulheres, formado por Cláudia Tajes, Mariana Mesquita, Ana Flávia Marques e Dione Carlos, além de Marcos Barbosa. A direção geral é de Rogério Gomes, da última versão de “Pantanal”.
Por ser uma novela pensada para o streaming mais tarde, deve estrear na TV aberta, mas com cortes, “Guerreiros do Sol” tomou liberdades que não seriam vistas na programação linear da Globo. A violência da história, aqui, é gráfica, com balas furando a carne e fazendo jorrar sangue. Também há menos pudor em relação ao sexo, com seios e nádegas dando mais crueza ao sertão.
Numa cena, Rosa se masturba deitada na rede, com seus gemidos entrecortados pelo forró da noite anterior, quando dançou colada a Josué. “Tá passando mal?”, pergunta sua irmã, encarnada por Alice Carvalho, atriz que vive uma ascensão meteórica após “Cangaço Novo” e “O Agente Secreto”, do outro lado da porta.
Para os autores, “Guerreiros do Sol” continua sendo essencialmente uma novela, principalmente por causa de sua veia melodramática e apesar de já estar inteiramente gravada, ter menos núcleos de personagens, ser uma produção de gênero e ter apenas 45 capítulos. O termo “série”, porém, escapa aqui e ali nas entrevistas que a equipe vem dando.
O folhetim tem quase a mesma quantidade de capítulos de “Beleza Fatal” esta tinha 40, primeira e bem-sucedida aventura do streaming Max no formato. O padrão se repete, apontando para o que pode ser um desdobramento ou alternativa da novela tradicional.
Para o espectador, “Guerreiros do Sol” talvez esteja mais próxima de uma grande produção de faroeste hollywoodiana, ou dos filmes de Glauber Rocha, do que das picuinhas de Odete Roitman e Maria de Fátima, de “Vale Tudo”.
Existe aí um paralelo interessante. Na história, a resiliência feminina é confrontada pelo patriarcalismo. No mundo real, o gênero de ação, comumente associado aos homens, toma de assalto o melodrama da novela. Assim, o Globoplay espera abocanhar uma fatia ampla do público, borrando as barreiras entre série e folhetim.
Independentemente do recorte de gênero, o que importa mesmo é manter o cheiro brasileiro, afirma Isadora Cruz. “Enquanto há gente vendo filme de cowboy no meio-oeste dos Estados Unidos, fascinada, admirando a cultura estrangeira, nós temos acontecimentos tão interessantes quanto na nossa própria história. É um universo muito brasileiro, que nos ajuda a entender quem somos.”
Guerreiros do Sol
- Quando Estreia nesta quarta (11), no Globoplay
- Classificação 16 anos
- Autoria George Moura e Sergio Goldenberg
- Elenco Isadora Cruz, Thomás Aquino e Irandhir Santos