Brasil é terra do cinema e isso nunca vai morrer, diz o diretor do Festival de Cannes
Por Davi Galantier Krasilchik/Folhapresss em 18/12/2025 às 11:27
“Em uma noite de insônia, meu irmão inventou o cinema”, teria dito Auguste Lumière sobre Louis Lumière, na época em que ambos desenvolveram o cinematógrafo. Ao menos é o que diz Thierry Frémaux em “Lumière! A Aventura Continua”. O documentário recupera o aparelho precursor das filmagens e projeções de imagens em movimento enquanto objeto de fascínio para o francês.
Lançado nesta quinta (18), o filme chega ao Brasil nove anos depois da primeira produção, que também reunia mais de uma centena de curtas da dupla. Entre cenas pouco conhecidas do século 19 e outras que se popularizaram ao longo da história, o diretor do Instituto Lumière narra por cima dos materiais escolhidos e revela sonhos que o tempo não apagou.
“Não conheço nenhum filme que seja antigo. Nós nunca dizemos que um Shakespeare é antigo, que um Mozart é antigo ou que um Van Gogh é antigo. Porque um filme mudo e em preto e branco é considerado antigo?”, disse ele em uma passagem por São Paulo. A atuação simultânea de inventores como Thomas Edison e cineastas como Georges Méliès trouxe dúvidas aos historiadores do cinema, e Frémaux defende que os Lumière nunca receberam o seu devido reconhecimento.
“Eu queria que as pessoas pudessem escolher entre um filme de Kleber Mendonça Filho, de Paul Thomas Anderson e dos Lumière ao comprar um ingresso. Queria explorar o trabalho deles em uma hora e meia e mostrar que nele ainda há motivos para ir ao cinema e para o público aprender mais sobre si.”
A menção ao pernambucano não se dá por acaso. Habituado a frequentar várias sessões no mesmo dia, Frémaux dorme pouco e é o cinéfilo ideal para comandar não só o instituto voltado a arquivos e mostras dos Lumière, como também o evento de cinema mais importante de todos o Festival de Cannes.
Na edição de 2025, a ficção “O Agente Secreto” conquistou os prêmios de melhor direção, melhor ator para Wagner Moura e melhor filme, segundo a crítica. Apesar dos troféus, não é o primeiro longa do brasileiro que vem à mente do chefão. Ele relembra “Retratos Fantasmas”, documentário de Mendonça Filho que esteve no evento em 2023. As duas obras debatem, à sua forma, o declínio dos cinemas de rua no Recife.
“A primeira viagem que fiz pelo Festival foi para o Brasil. Era o ano em que Karim Aïnouz lançava Madame Satã. Mais tarde, conheci os filmes de Fernando Meirelles, passei a admirar Walter Salles por ‘Linha de Passe’ e a paixão só cresceu. Sempre soube que o Brasil era uma grande terra do cinema”, diz Frémaux.
Em visita à capital paulista, ele apresentou “A Aventura Continua” na Cinemateca e participou de um bate-papo com o diretor de “Ainda Estou Aqui”. Diante da campanha que trouxe ao Brasil o seu primeiro Oscar, Salles é outro que teve de se acostumar com poucas horas de sono, como confessa à reportagem.
“Passado aquele tempo, o Brasil desapareceu. Mas algo o trouxe de volta e novos autores surgiram. Isso mostra que um país do cinema nunca morrerá e que teremos um futuro marcado pela junção entre artistas do mundo todo”, diz o francês. Nem por isso a competição de Cannes desse ano ficou ilesa muitos criticaram a lista pelo excesso de americanos e europeus e a escassez de nomes de regiões como a África.
O cinema oriental, por outro lado, e mesmo em baixa quantidade, saiu premiado do festival. A abordagem experimental de “Ressurrection”, dirigido pelo chinês Bi Gan, encantou os jurados pela estranheza e exigiu a criação de um troféu especial. O filme funciona como espécie de carta de amor ao cinema e celebra os Lumière, apesar dos quilômetros que os separavam da Ásia.
“Poucos diretores continuam o legado deixado pelos irmãos. Mas talvez eles tragam as mesmas questões que estavam na cabeça deles. O que faço com minha câmera? Qual é a melhor posição? Que história eu quero contar?, diz Frémaux. “Também gosto da ideia de que a música chinesa não é igual ao rock’n’roll de Londres. Da mesma forma que a música brasileira não é a música francesa. Mas é bom que um chinês se inspire nos Lumière. Ao usar a câmera para construir uma imagem de mundo, falamos a mesma língua.”
Em seu filme, o realizador investiga filmagens de vários tipos. Algumas observam centros urbanos e se destacam pela quantidade de pedestres. Outras priorizam a natureza e exibem as planícies que um trem atravessa ou o mar tomado por ondas. Sobra tempo para pequenas narrativas, com menos de um minuto.
Frémaux cita Mendonça Filho ao tratar do encontro entre a realidade e a fantasia ”os filmes de ficção são os melhores documentários”. Em maio, muitos filmes exibidos em Cannes flertaram com o fantástico. “Sirât” construiu uma rave espiritual para debater a humanidade, “O Som da Queda” fez do terror metáfora para a opressão feminina e “O Agente Secreto” decifrou a ditadura militar à luz de lendas urbanas.
“A fantasia é cinema. Tudo é cinema e existem inúmeros estilos. Hoje, o ‘cinema de autor’ é bastante valorizado, mas temos que observar também os rumos do cinema mainstream. Essas produções têm se fragilizado cada vez mais e devemos lembrar que o sucesso de filmes comerciais ajuda ‘filmes de autor’.”
O chefão se gaba de ter selecionado, quase 20 anos atrás, “O Labirinto do Fauno”, de Guillermo Del Toro, como o primeiro filme de fantasia a ser exibido no festival. Hoje, o cineasta mexicano pode concorrer ao Oscar por sua adaptação de “Frankenstein”, produzida pela Netflix. Segundo Frémaux, a escala do projeto não condiz com telas de celular ou plataformas de streaming, apesar de reconhecer que os serviços facilitam suas maratonas e que a sua cinefilia veio da televisão.
Ele se diz animado para ver “A Odisseia” de Christopher Nolan, capturada em IMAX. “Não deveríamos estar discutindo se um filme deve ser filmado em película ou com câmeras digitais. Deveríamos estar discutindo o cinema enquanto ato social. Quando uma sala se fecha, ela é fechada para sempre.”
Frémaux não compartilha da inocência que afirma ver nos filmes dos Lumière. Redes amplificam as imagens do dia a dia e trens que pareciam avançar sobre o público deixaram de assustá-lo há décadas. Manter a juventude acordada no escuro do cinema se tornou um grande desafio.
“Precisamos trabalhar com as novas gerações. É algo que estamos tentando fazer no Instituto Lumière. Cerca de 60 mil jovens passam por lá todo ano, em sessões para 300 pessoas. É um espaço que se torna agitado, barulhento. Mas quando o filme começa, tudo muda em questão de segundos.”
“Tem sido difícil provocar curiosidade e mandar as gerações atuais para as salas de cinema, onde ficarão horas sem usar o celular ou fazer outra coisa. É um modo de reestabelecer o controle sobre suas vidas.”
Sobre o frenesi da Palma de Ouro, Frémaux é indiferente. Não é a estatueta que o mantém acordado. “Não vejo um filme porque ele recebeu um prêmio. Quando jovem, não ligava para os filmes em competição. Preferia ver filmes desconhecidos. Me orgulhava de ver o que o grande público deixava passar.”
Lumiére! A Aventura Continua
- Quando: Em cartaz nos cinemas
- Classificação: 10 anos
- Produção: França, 2025
- Direção: Thierry Frémaux