Além dos memes: a realidade do Caps e o impacto do estigma na saúde mental
Por HENRIQUE GODINHO em 26/09/2025 às 06:00
Piadas sobre os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) viralizam na internet, mas especialistas alertam: o humor pode reforçar preconceitos e prejudicar a busca por tratamento. Se você usa as redes sociais, é provável que já tenha visto “memes” sobre os Centros de Atenção Psicossocial, conhecidos como Caps. Mas você já parou para pensar no impacto que essas “piadas” podem ter na vida de quem está em tratamento? O trabalho realizado nesses locais é fundamental para a saúde mental, mas ainda carrega estigmas que precisam ser combatidos.
Ergon Cugler, 27, pesquisador sobre desinformação e políticas públicas, explica que o humor é parte essencial da vida social, mas pode ser usado tanto para aproximar quanto para excluir. “Quando o riso se constrói sobre a dor do outro, reforça preconceitos de maneira sutil. A piada parece inofensiva, mas reproduz estigmas. O problema não é brincar, mas quando a brincadeira substitui o debate sério e legitima visões distorcidas sobre pessoas que já enfrentam vulnerabilidades.”

Ele reforça que os memes, como qualquer outro meio de comunicação digital, podem ser usados para diferentes finalidades. A solução não é a censura, mas a reflexão. “Os memes têm um poder enorme, pois condensam ideias complexas em mensagens rápidas. Quando repetem estereótipos, reforçam preconceitos existentes. Por isso, antes de compartilhar, é importante se perguntar: ‘Isso contribui para o debate ou só reforça preconceitos?’ A ideia é usar o humor de forma criativa para quebrar estereótipos, construindo uma internet mais inclusiva e transformando o riso em ferramenta de aproximação, não de exclusão.”
Caps: da exclusão à liberdade
Para entender a importância do Caps, é preciso voltar no tempo. A Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei nº 10.216/2001) foi um marco na história da saúde mental no Brasil. Ela visou substituir os antigos manicômios — onde pessoas com transtornos mentais eram internadas por longos períodos, isoladas da sociedade — por um modelo de tratamento humanizado e em liberdade. O objetivo é manter o paciente com participação ativa na comunidade.
Ergon exemplifica que o pensamento manicomial ainda é reforçado na sociedade, que tende a se afastar do que foge aos padrões. “O estigma tem raízes históricas e culturais. Por séculos, pessoas com transtornos mentais foram tratadas como incapazes ou perigosas, isoladas em instituições. Essa herança se perpetua em nossa cultura, reforçada pela falta de informação e por representações negativas em filmes, piadas e nas relações cotidianas.”
A partir de 2002, o Ministério da Saúde popularizou os Caps por todo o país como uma política pública. Eles se tornaram o pilar de uma nova forma de cuidado, oferecendo tratamento diário, intensivo e comunitário, que promove o contato social e familiar.

Para a psicóloga Cecília Sandoval, 26, a mudança foi do “aprisionamento sem direitos para um tratamento digno e humanizado”. “Os manicômios tinham um modelo muito precário — as pessoas não tinham dignidade, nem condições básicas de alimentação e saneamento. Não havia tratamento; as pessoas eram excluídas e colocadas nesses espaços que reproduziam muita violência. Era uma exclusão mascarada de cuidado. Com a mudança, passamos a entender o cuidado de outra forma, em uma lógica de cuidado longitudinal realizado por uma equipe multiprofissional, em liberdade e com todos os direitos garantidos.”
O impacto real: a visão de quem vive o Caps

Cecília, que já atuou no Caps adulto e hoje trabalha no infanto-juvenil, compara o tratamento no local com o de outros cuidados de saúde. “Precisamos de diversos cuidados ao longo da nossa vida — médico, fisioterapeuta, nutricionista, etc. O Caps é mais um desses espaços de cuidado de que as pessoas vão precisar. É um lugar de acolhimento, tratamento, escuta e afeto.”
Para ela, a estigmatização nas redes sociais é prejudicial, pois dificulta o acesso ao tratamento, principalmente para o público jovem. “Pessoas que precisam ou já estão em tratamento estão muito vulneráveis e frágeis. Quando são alvo de piadas, são ainda mais excluídas, sentindo medo ou vergonha de buscar ajuda. Um exemplo disso é o público mais jovem, que tem mais acesso às redes sociais como TikTok ou Instagram e chega até nós muito mais afetado por esses memes.”
A profissional destaca que muitos pacientes chegam ao Caps com esses estigmas já enraizados, sentindo vergonha. A equipe tenta desconstruir essa visão, informando sobre o que o Caps é e o que ele oferece. “A partir dessas informações, as pessoas vão mudando a visão que têm sobre o espaço”.
Um novo capítulo de vida: a história de Janaina

Imagine a oportunidade de estudar na Europa, conhecer novas culturas e ter um período de crescimento. Para a docente brasileira Janaina Behling, 48, de São Paulo (SP), essa experiência em Coimbra (Portugal) se tornou o início de uma história de autoconhecimento e superação após seu retorno ao Brasil.
Janaina relata que decidiu voltar ao país por conta de ataques de xenofobia que enfrentou. “Me encontrei num período de extrema reversão de valores identitários depois de voltar da Europa. Parece chique, mas foi uma experiência traumática e não tive ninguém para me apoiar.”
Após três anos, em seu retorno, ela encontrou no localum suporte vital. “O Caps me recebeu de braços abertos e me deu a chance de reformular minha carreira como professora universitária ao conhecer várias pessoas diferentes, interessantes e realmente na mesma situação que eu, sem apoio familiar nenhum.”
A professora não sente vergonha de falar sobre seu tratamento ou se incomodar com os memes nas redes sociais. Pelo contrário, ela fala abertamente e com orgulho. “O meme faz parte da linguagem humorística da internet, de sentido imediato. Conheço gente que poderia rir junto ou até inventar outros memes. Isso é saúde mental. Nesse caso, não vejo nenhum estigma; vejo ignorância e ingenuidade.”
Ela destaca a evolução em seu tratamento e o trabalho dos profissionais. “Estou em tratamento desde fevereiro de 2025 e me saindo muito bem. É uma política pública da qual qualquer governo deveria se orgulhar em apoiar. Não há pressa para diagnósticos, o atendimento é humanizado, acolhedor. E o que é melhor: para todo tipo de público. Ao contrário do que possam imaginar, eu tenho orgulho de participar do Caps.” Ela conta ainda que, durante o tratamento, já conseguiu recolocação profissional e segue estudando para concursos.
Como o Caps funciona (para quem precisa de ajuda)
O Caps é um serviço de saúde mental gratuito, disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), que oferece tratamento em liberdade, sem a necessidade de encaminhamento. Os pacientes são acolhidos e recebem um Plano Terapêutico Singular (PTS), criado por uma equipe multidisciplinar. O objetivo é a reinserção social e familiar.