Fraude no CNU expõe quebra de isonomia e compromete a lisura do concurso

Por Eduardo Velozo Fuccia/Vade News em 17/10/2025 às 06:00

Reprodução/Arquivo
Reprodução/Arquivo

Transformado em caso de polícia e objeto de mais de 4.300 ações judiciais, o Concurso Nacional Unificado (CNU) de 2024, conhecido como Enem dos Concursos, segue o seu curso. Apesar das denúncias que vieram à tona já na data de aplicação das provas, no dia 18 de agosto daquele ano, e continuam a emergir, o ritmo do certame não foi alterado.

Fatos denunciados por vários candidatos e a recente descoberta, pela Polícia Federal, de um esquema de venda de gabaritos por até R$ 500 mil, que inclusive resultou em prisões, maculam o certame. Eles afrontam os princípios constitucionais da isonomia e moralidade administrativas, em detrimento da grande maioria dos participantes.

A violação a tais princípios, em tese, autoriza a anulação do concurso, apesar dos desgastes econômico, político e à Administração Pública que tal medida pode gerar. Na dúvida de quem se beneficiou ou não da fraude, a expectativa de direito dos candidatos aprovados não pode prevalecer diante dos vícios insanáveis do certame.

O interesse administrativo em ter os seus cargos preenchidos para o bom funcionamento da máquina estatal também não justifica a sobrevivência do concurso. O fundamento para anulá-lo reside no próprio interesse público. A Administração deve barrar o ingresso em seus quadros de quem se valeu de meio ilícito para ser aprovado.

Devido à fraude, o pretenso direito da minoria aprovada não pode se sobrepor ao da maioria que não obteve êxito. A pontuação dos fraudadores elevou a nota de corte, alterou a configuração de classificação e impossibilitou que candidatos tivessem a chance de ter a redação avaliada, o que alteraria esse cenário se elas fossem corrigidas.

Ministério minimiza

Responsável pelo CNU, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) sempre minimizou os problemas verificados no concurso. Ao comentar a Operação Última Fase, deflagrada pela PF no último dia 2 de outubro, a ministra Esther Dweck disse que houve fraude “pontual”, sem indícios de um problema generalizado no certame.

À revelia do que a PF apurou e ainda pode descobrir, a depender do avanço das investigações, como se nada tivesse acontecido, o MGI autorizou no dia 8 de outubro a nomeação de 459 candidatos aprovados. Porém, se por um lado a ministra vê como pontuais os problemas detectados, por outro, ela reconhece as falhas ocorridas.

Esse reconhecimento é perceptível pelas medidas de segurança que a ministra anunciou como novidades para o CNU de 2025, cuja prova objetiva foi aplicada no dia 5 de outubro. Na segunda edição do megaconcurso nacional, segundo ela, foi usado detector de metal em todas as portas das salas de prova, e não apenas nos banheiros.

O objetivo do uso desse equipamento foi o de impedir a entrada de dispositivos eletrônicos. Esther Dweck (foto abaixo) também divulgou a disponibilização de detectores de ponto eletrônico em todas as cidades nas quais as provas foram realizadas, a fim de serem utilizados pelos fiscais em casos de suspeita.

Também houve a identificação das provas com código de barras. A ministra explicou que cada prova foi única e totalmente diferenciada por candidato através da respectiva sequência numérica ou alfanumérica. Desse modo, na hipótese de vazamento de gabarito, é possível rastrear a origem do conteúdo vazado até o candidato específico.

Outra medida de segurança implementada para a segunda edição do CNU foi a do sigilo do gabarito. Não houve identificação imediata na prova que permitiria saber qual é o modelo de respostas. Apenas no dia seguinte ao do exame é que os candidatos puderam conhecer os gabaritos oficiais de seus respectivos cadernos de questões.


Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Operação da PF

A PF descobriu na Operação Última Fase um esquema que fraudou não apenas o CNU 2024, como também concursos das polícias civis de Pernambuco e Alagoas, da Universidade Federal da Paraíba, da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil. Três mandados de prisão e 12 de busca e apreensão foram cumpridos.

Além dos mandados expedidos, a Justiça decretou diversas medidas cautelares em desfavor dos investigados na Paraíba, em Pernambuco e Alagoas. Elas incluem o afastamento de cargos públicos para quem é servidor e o sequestro de bens. Os pedidos foram formulados pela PF com o aval do Ministério Público Federal (MPF) na Paraíba.

Apontado como um dos cabeças da organização, um ex-policial militar entrou no radar da PF porque foi aprovado no CNU para o cargo de auditor-fiscal do trabalho (AFF) junto com um irmão e uma sobrinha, em Patos (PB). A partir do ex-PM, a investigação avançou para mais seis candidatos aprovados.

Todos os alvos da investigação apresentaram gabaritos idênticos, acertando e errando as mesmas questões. No caso do ex-PM e de outro acusado de liderar o esquema, apesar da aprovação, eles não fizeram o curso de formação. Para a PF, esse fato é indício de que o propósito da dupla seria demostrar aos “clientes” a viabilidade da fraude.

A Justiça autorizou a quebra do sigilo telemático dos acusados. Essa perícia revelou, por exemplo, que a sobrinha do ex-PM recebeu em seu celular as respostas das provas dos turnos da manhã e da tarde antes delas iniciarem. Também lhe foi enviado um texto sobre o tema da redação, revelado aos candidatos só na hora do exame.

“Grande para caramba”, reagiu a sobrinha, ao verificar a redação pronta. A PF não tem dúvida de que a organização criminosa teve acesso antecipado à prova, o que pressupõe o envolvimento de pessoas ligadas à organização do concurso, a cargo da Fundação Cesgranrio. A banca responsável pela edição de 2025 é a Fundação Getúlio Vargas.

Os diálogos obtidos com o afastamento do sigilo de dados elucidam como ocorria o acesso antecipado às provas. Segundo a PF, em uma conversa foi dito sobre o uso de uma ferramenta para retirar o lacre do malote. Após o caderno de perguntas ser copiado, ele era guardado de novo no saco de lona e o lacre, recolocado, sem deixar vestígios.

As investigações prosseguem. Não está descartada a hipótese de que candidatos, após aderirem ao esquema, tenham atuado por conta própria ou em nome da quadrilha para recrutar outros interessados em participarem da fraude. Seria uma forma deles reduzirem ou dividirem os seus gastos com a compra de gabaritos.

Essa possibilidade abre o leque para um número, por enquanto, inestimável de beneficiários com o vazamento de gabaritos. Com quase um milhão de inscritos, o CNU 2024 teve provas aplicadas em 228 cidades. O concurso ofereceu 6.640 vagas de níveis superior e intermediário distribuídas em 21 órgãos federais.

Provas erradas

Outra falha do concurso se tornou pública e nem precisou da intervenção da PF. Um grupo de candidatos que realizou a prova em Recife (PE), por engano, recebeu no turno da manhã as provas que só deveriam ser entregues no período da tarde. Uma candidata denunciou a situação nas redes sociais e o MGI confirmou a ocorrência do fato.

No entanto, o órgão disse que o problema “não afetou a aplicação nem o sigilo das informações”. Para a ministra Esther Dweck, o concurso não sofreu prejuízo em “termos de segurança”. Segundo a concurseira denunciante, os candidatos ficaram com as provas erradas por 11 minutos, até que perceberam e avisaram os fiscais.

Os cadernos de perguntas foram recolhidos, sendo entregues aos mesmos candidatos à tarde. Concurseiros protestaram nas redes sociais que o acesso antecipado de alguns às questões comprometeu a isonomia do certame. Também cogitaram a possibilidade de repasse a terceiros do conteúdo das provas, enquanto elas ficaram em envelope violado.

* Por Eduardo Velozo Fuccia/Vade News

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