Amir Haddad e Renato Borghi levam histórias de luta e liberdade ao palco

Por Andre Marcondes/Folhapress em 29/08/2025 às 09:58

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Não é uma peça. É um acontecimento. A montagem “Haddad e Borghi: Cantam o Teatro Livres em Cena”, que chega ao Sesc Consolação após temporada de sucesso no Rio de Janeiro, é a materialização de uma amizade de 70 anos e da história viva do teatro brasileiro. Pela primeira vez, Amir Haddad e Renato Borghi dividem o palco como protagonistas, em um formato que foge do convencional para celebrar a trajetória de dois grandes atores.

A ideia do espetáculo surgiu de forma tão orgânica quanto seu desenvolvimento em cena. “Ah, foi em um dia de comilança!”, revela Borghi. “Fomos jantar na casa do Barata. Como sempre, era um festival de comida… O Barata nos viu conversando e disse: ‘Nossa, tenho que botar esses dois em cena’”. O diretor Eduardo Barata confirma a anedota e acrescenta: “A diferença aqui é que a trajetória deles seria contada no palco por eles mesmos, de uma forma cênica, teatralizada, não como uma palestra”.

O que o público encontra é uma roda de conversa que mescla memórias, causos e reflexões profundas sobre o ofício, pontuada por canções e textos de autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A direção de Barata optou por um roteiro que serve mais como um mapa do que um script rígido.

“Existe uma ordem. É um roteiro que surgiu depois de dez ou 12 encontros de conversa com eles… Eles são provocados pelos quatro atores que estão em cena”, explica o diretor. Esses atores —Débora Duboc, Duda Barata, Élcio Nogueira e Máximo— atuam como anjos da guarda, guiando a narrativa.

A dinâmica entre os mestres no palco espelha suas personalidades distintas. “Eles são muito diferentes”, observa Barata. “O Renato é muito organizado, disciplinado… O Amir é anárquico, é o ‘não teatro’. O Renato estuda o roteiro, já sabe o que vai falar. O Amir, não. O Amir é no momento”. Essa imprevisibilidade é parte crucial do espetáculo, que se renova a cada apresentação.

O encontro revisita momentos fundadores, como a criação do Teatro Oficina. Borghi relembra: “O Amir fundou o Teatro Oficina e dirigiu a primeira peça do Zé Celso”. Haddad complementa, rindo: “Acabei me tornando diretor porque não havia lugar de ator para mim. Eles disseram: ‘Então você dirige’. Fui jogado na direção e nunca mais saí”.

O espetáculo não se furta a revisitar os anos de chumbo da ditadura militar, um período que moldou a coragem e a inventividade do teatro brasileiro. Renato Borghi, à época no Teatro Oficina, viveu na pele a repressão direta do regime. Ele narra a perseguição sofrida: “Vivíamos sob a vigilância do Dops… Invadiram ‘Roda Viva’, espancaram atores”. Seu relato expõe a violência crua e a intimidação que grupos teatrais institucionalizados enfrentavam, sujeitos à censura prévia e a ataques brutalmente organizados.

Em contraponto a essa experiência, Amir Haddad desenvolveu uma estratégia de resistência tão genial quanto móvel. Ao fundar o grupo Tá Na Rua, ele se tornou inapreensível para a máquina censória. “Quando eles chegavam, a gente já não estava mais lá”, explica Haddad, com a sagacidade de quem usou o espaço público como trunfo. “Nunca censuraram o espetáculo. Nunca mandei o texto para a censura.”

Sua tática era a fugacidade e a surpresa. Ao não ter um endereço fixo, ele tornou o teatro um ato fantasma, impossível de ser cerceado pelos mecanismos tradicionais de controle. Juntos, no palco, suas narrativas complementares ilustram as múltiplas frentes de luta e sobrevivência artística em um dos períodos mais sombrios do país.

Se as memórias da ditadura ilustram uma censura explícita e violenta, o espetáculo também lança um olhar crítico sobre os obstáculos contemporâneos à criação artística. A conversa no palco evolui para os desafios do presente, identificando uma nova forma de cerceamento, mais sutil porém igualmente eficaz: a pressão econômica e o patrocínio como filtro criativo. O diretor Eduardo Barata aponta essa mudança de paradigma: “Acho que hoje temos um tipo de preocupação similar, mas de outra forma: a censura do patrocinador”. Ele elabora sobre como grandes empresas condicionam financiamento a espetáculos inócuos, “leves, quase ‘Cinderela’ para adulto”, privilegiando uma cultura mercantilista em detrimento da ousadia artística.

Nesse contexto, a luta pela sobrevivência econômica emerge como a principal forma de censura moderna. Barata contrasta a realidade de diferentes cenas: “São Paulo é diferente porque tem o Sesc… No Rio de Janeiro, não temos nada disso”.

A trajetória de Haddad e Borghi, que sobreviveram por sete décadas “sem uma instituição por trás, sem patrocínio, sem ter mudado a estética ou a linguagem”, torna-se, em si, um ato de resistência. É por isso que o diretor conclui, com convicção: “Por isso, para mim, o espetáculo significa liberdade. Esses dois significam liberdade”. A liberdade da qual fala não é apenas política, mas a liberdade de criar com autonomia, longe das amarras do mercado e da conveniência, um testemunho vivo de que a arte pode, de fato, se sustentar por sua força e sua verdade.

É essa liberdade e essa resistência que o espetáculo exalta, servindo de inspiração para novas gerações. O conselho de Borghi é direto: “Tudo leva você a desistir. Não desista. Vá em frente. Batalhe”. Haddad é ainda mais enfático: “Fazer o que você tem vontade é a coisa mais importante da vida… Se você fizer outra coisa, será infeliz pelo resto da vida”.

“Haddad e Borghi: Cantam o Teatro Livres em Cena” é mais do que uma retrospectiva; é um testemunho vivo de que o teatro é, acima de tudo, uma questão de existência. Como define Barata, “esses dois são referências e sempre quebraram padrões, nunca aceitaram o que era imposto”. E agora, essa história de resistência e paixão se encontra em cena, para todos verem.

Haddad e Borghi: Cantam o teatro, livres em cena

  • Quando Estreia 29 de agosto
  • Onde Sesc Consolação – rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque
  • Preço A partir de R$ 21 (credencial plena)
  • Classificação Livre
  • Elenco Amir Haddad, Renato Borghi, Débora Duboc, Duda Barata, Elcio Nogueira Seixas e Máximo Cutrim
  • Direção Eduardo Barata
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