'Manas' é exuberante e triste, interpretado por um elenco muito forte
Por Lúcia Moneteiro/ Folha Press em 16/05/2025 às 17:43

A mãe pede ajuda à filha Tielle para estender a roupa lavada no varal. A menina sai do quarto, topa dividir o trabalho com a mãe e puxa conversa. Quer saber por onde anda a irmã mais velha. Será que ela vai voltar?
Não há nada de banal na cena. É com deleite que o espectador sudestino, habituado à paisagem de adolescentes grudados em celulares, acompanha o entrosamento das duas, numa coreografia de lençóis. O varal está instalado sobre uma passarela de madeira relativamente estreita, entre a pequena casa sobre palafitas e o rio. Estamos na Ilha de Marajó, no Pará, e essa é a sequência de abertura de “Manas”, primeiro longa-metragem de ficção de Marianna Brennand.
Mais tarde, descobrimos que, como não é raro acontecer, o nome da garota, Marcielle (Jamilli Correa), traz a síntese entre o da mãe, Danielle (Fátima Macedo) e Marcílio (Rômulo Braga). O cotidiano da garota é apresentado em planos próximos das ações, filmados pelo diretor de fotografia Pierre de Kerchove -de “Retrato de um Certo Oriente” (2024), de Marcelo Gomes, e “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014), de Daniel Ribeiro.
Em detalhe, vemos a colheita e o processamento do açaí, o aprendizado da espingarda, ferramenta de caça, o caderno que Tielle faz para a irmã com folhas improvisadas amarradas à mão, os ensaios para a apresentação de dança, o livro da escola.
Há encanto em cada imagem e dá vontade de mergulhar sem apreensões ou julgamentos na história daquela família. Uma porção de sinais, porém, indicam que, apesar da beleza, não se trata de uma história leve. É difícil não ver alguma pobreza: os pais e os três filhos dividem o mesmo quarto, há pouca comida na mesa. A irmã mais velha arrumou um homem bom, com mais condições, e foi embora para longe, explica a mãe, grávida, à filha que ficou, ao menos por enquanto, e seu olhar deixa perceber uma vontade de ir embora, ela também.
A presença evangélica é sentida não só nos ensaios e apresentações da igreja, mas também no livro da escola, cujas páginas sobre sexualidade e aparelho reprodutor estão grampeadas. Se a pureza da economia de subsistência havia provocado suspiros em quem critica o consumo exagerado da cidade, é preciso engolir os suspiros de volta quando percebemos que, para conseguir algum dinheiro, meninas de 13 anos “vão vender peixe na balsa”, senha para a iniciação na prostituição.
A barriga da mãe fica grande, a rede de Tielle quebra. A garota precisará dividir a cama com o pai. Retratado com a elegância possível, ou seja, em elipses narrativas, o abuso sexual sofrido por Marcielle vai sendo percebido pela garota e pelos espectadores.
Não é esse destino que a plateia desejava para a protagonista. Que Tielle não o aceite não torna a história menos trágica. Que Dira Paes interprete o papel de uma delegada motivada a combater a exploração de crianças não torna menos violenta a coisa toda.
“Manas” é um filme exuberante e triste, interpretado por um elenco muito forte -a expressividade de Jamilli Correa não deixa ninguém indiferente. Impossível não pensar em “Iracema” (1974), de Jorge Bodansky e Orlando Senna, e imaginar o contexto que levou sua personagem-título, também adolescente, a abandonar a vida ribeirinha para prostituir-se em Belém e depois na Transamazônica.
Mais habituada ao documentário, Marianna Brennand investiu na narrativa de ficção em meio a uma pesquisa aprofundada sobre tráfico de menores e abuso na Ilha de Marajó. Meio século depois de “Iracema”, porém, sobra o desejo de ver uma adolescência feliz e saudável em meio aos igarapés amazônicos.
Ou em que o desejo de ir embora não seja apenas fruto do desespero. Depois de ver o longa, vale buscar no YouTube o curta “Ribeirinhos do Asfalto” (2011), da paraense Jorane Castro, em que uma garota troca a Ilha do Combu por Belém pela vontade de estudar.
Manas
– Avaliaçao Ótimo
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 16 anos
– Elenco Jamilli Correa, Dira Paes e Rômulo Braga
– Produção Brasil, 2024
– Direção Marianna Brennand