Como Kiyoshi Kurosawa transforma o cinema em elo entre humanos e fantasmas
Por Davi Galantier Krasilchik/Folhapress em 16/07/2025 às 11:36

Mesmo com quase 70 anos, Kiyoshi Kurosawa parece um verdadeiro nativo da internet. O cineasta japonês usa conexões virtuais para expor sintomas do mundo contemporâneo. Divididos entre aparelhos eletrônicos e a realidade, seus personagens costumam apresentar uma espécie de atrofia. Estejam sofrendo de maneira física ou emocional, podem perder a humanidade e se tornar outra coisa.
“Cloud”, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta (17), navega pelo tema ao investigar a rotina de um revendedor online. Especialista em golpes, Yoshii, papel de Masaki Suda, se esconde atrás de gigabytes enquanto uma legião sanguinária se forma ao seu redor. Mal sabe ele que um perfil anônimo não poderá o proteger.
Num mundo onde produtos perdem valor instantaneamente e novas tecnologias extinguem profissões, é comum que a incerteza amplifique lutas pela sobrevivência. Inspirado na onipresença do sistema de dados – a tal da nuvem que batiza o longa -, a atmosfera é de paranoia.
“Mais do que fazer qualquer crítica, procuro mostrar que a internet está em todo lugar. É uma ferramenta que se tornou natural em nossas vidas. Nem por isso ela deixa de ser muito perigosa”, afirma Kurosawa. A ideia surgiu da mistura entre eventos reais e desejos antigos.
Numa obra inspirada por justiceiros duvidosos que viraram notícia no Japão – como o jovem “assassino do Twitter” que atraía mulheres com tendências suicidas para sua casa – há pessoas que se arriscam em transações obscuras na rede, o diretor acredita ter feito seu primeiro filme de ação.
Embora recicle suas numerosas produções sobre a yakuza – títulos como “O Caminho da Serpente”, em que um homem busca vingar a execução da filha, o mantiveram bastante ocupado nos anos 1990, ele troca a máfia japonesa por anônimos. De um jeito ou de outro, o mal permanece como denominador comum.
“Penso que as redes são capazes de condensar a maldade humana. Talvez as pessoas tenham apenas uma pequena maldade em seus corações. Virtualmente, ela pode se transformar em algo muito maior.”
Se os perigos de “Cloud” partem de plataformas de venda e fóruns de debate, capazes de revelar endereços longínquos e detalhes pessoais, as discussões de Kurosawa não se restringem a websites.
Seja pela violência, seja pelas telas que intermedeiam espectadores e personagens – televisões, celulares e monitores surgem por todos os cantos, mas suas imagens não superam a falta de contato humano -, o cineasta representa uma patologia social.
Como a rede de computadores que percorre o planeta, seus projetos trazem um mal-estar compartilhado, impresso em luzes frias, planos de longa duração e interpretações contidas. Os movimentos são sempre sintéticos e as cenas jamais se estendem além do necessário.
Inscritos em gêneros que vão do drama ao horror – que popularizou o cineasta principalmente com “A Cura”, em que a exposição a gatilhos leva indivíduos comuns ao assassinato os protagonistas convivem com seres apáticos e subordinados à mesmice da rotina. Na superfície, desaparecem nos próprios corpos. No interior, se transformam em criaturas de outra natureza.
“Ainda que nem todos sofram mortes brutais, sinto que é comum que muitos sejam simplesmente descartados. Essa parece ser uma realidade no Japão, onde, sempre que possível, humanos são tratados como se não fossem pessoas”, diz Kurosawa.
A opressão está presente desde os curtas que rodou na universidade, cujas filas e filas de cadeiras reforçam padrões dos quais é impossível escapar. Apesar da formação em sociologia, foi lá que o japonês aprendeu a idealizar filmes com o crítico Shigehiko Hasumi. Mais tarde, e com uma coleção de comerciais e produções baratas, conquistou uma bolsa para estudar cinema nos Estados Unidos.
Afetados por ideais americanos e seus falsos milagres na economia japonesa, os indivíduos que retrata permanecem enquanto fantasmas, não digeridos pelo elo entre o analógico e o virtual. Apesar da ausência de espectros literais, certos momentos de “Cloud” continuam outros feitos do diretor. Reflexo disso é o primeiro ataque dos justiceiros, quando um estranho se anuncia por trás de uma porta de vidro. Distorcido, o rosto mascarado lembra um vulto inexplicável. A textura das câmeras digitais atualiza os pesadelos de Kurosawa capturados em grãos de película.
É uma versão em carne e osso de aparições como as de “Pulse”, lançado pouco após a virada do milênio. No terror, aqueles que acessam uma página misteriosa são aprisionados no ciberespaço. Vítimas da solidão, seu desintegrar dá lugar a manchas escuras, espíritos destinados a atormentar os que ficaram.
Anos depois, o cineasta denunciou outras consequências do capitalismo tardio em “Crimes Obscuros”. A trama segue um detetive assombrado por uma mulher de vestido vermelho. A peça paira no ar como vestígio material dos que partiram. Dessa vez os fantasmas emergem de terrenos baldios e construções abandonadas. Foram esquecidos pela urbanização mal planejada e vagam por ruínas da periferia.
Mesmo que as ameaças entre Yoshi e seus perseguidores não mirem o surreal, as relações de “Cloud” também servem à desumanização. Entre trocas de tiro e o convívio em salas escuras, na companhia quase exclusiva do brilho de computadores, tudo aponta para comportamentos sistemáticos.
As mortes acontecem no ritmo de uma linha de produção. É algo que se aproxima de “Sessão Espírita”, telefilme sobre uma médium que encontra uma menina desaparecida e decide usá-la para emplacar a carreira. A comercialização de habilidades sobrenaturais faz a criança pagar com cicatrizes e sofrimentos.
Para piorar, o uso minimalista dos sons deixa as histórias mais opacas. “Em ‘Cloud’, quando há muitas mortes, eu nunca uso música. Em filmes como esse, trilhas sonoras típicas do cinema americano facilitariam a compreensão. O uso de uma música triste, por exemplo, transformaria a cena em uma situação terrível. Prefiro que o espectador decida. – O que vocês acham disso, do descarte de pessoas como se fossem objetos? -“, explica Kurosawa.
Talvez o ápice de sua manipulação sonora esteja em “Sonata de Tóquio”. O drama de 2008 segue as mudanças de uma família após o pai perder o emprego. Em meio a hordas de desempregados que perambulam pelas ruas e casas apertadas com moradores dissociados uns dos outros, o filho mais novo é um resquício de esperança.
Seu sonho de tocar piano atravessa o dia a dia monótono em sequências pontuais, quando o instrumento raramente está em tela. A sonata surge como força mística e tenta superar o sistema trabalhista.
Com o tempo, o diretor diversificou os estilos e os fantasmas assumiram outras roupagens. Em “Antes que Tudo Desapareça”, de 2017, alienígenas usurpadores de corpos tentam destruir a Terra, mas a relação de um deles com uma humana coloca o plano em cheque. O choque entre romance, ficção científica e suspense desafia a sociedade dormente.
Dois anos depois, Kurosawa trocou as cidades japonesas pelas montanhas do Uzbequistão. Naturalista, “O Fim da Viagem, O Começo de Tudo” põe uma repórter para enfrentar outra cultura enquanto busca a matéria perfeita. Cercada de olhares, costumes incomuns e uma língua diferente, ela é assombrada por dúvidas e objetivos de vida há muito enterrados.
Já em 2020, a preferência foi pela Segunda Guerra Mundial. Em “A Mulher de um Espião”, militares dominam um Japão aliado a nazistas. Ao esconder segredos de governo em filmagens caseiras, um casal tenta reverter a destruição. Ainda que indiretamente, os mortos se acumulam no inconsciente da dupla e o roteiro questiona a essência dos registros históricos. Quem sobra para preservá-los?
“Embora a realidade possa ser assustadora, pequenas boas ações, quando feitas por muitas pessoas, podem gerar algo extremamente positivo”, afirma o cineasta. Mesmo com um trabalho sempre prolífico – a filmografia já alcançou sua própria idade é possível que 2024 tenha sido o ano mais ambicioso.
Junto de “Cloud”, Kurosawa ainda lançou o média-metragem “Chime” – terror disponível como NFT em que facas afiadas seduzem um perigoso chef de cozinha – e um remake francês de “O Caminho da Serpente”.
Nem por isso considera a inteligência artificial para agilizar seus processos. “Não condeno, mas não vejo sentido em usar IA e algoritmos para planejar possíveis hits. Tenho claro, para mim, a diferença entre o que é criar e o que é ganhar dinheiro.”
Cloud
- Quando: Em cartaz nesta quinta (17) nos cinemas
- Classificação: 16 anos
- Elenco: Masaki Suda, Kotone Furukawa e Daiken Okudaira
- Produção: Japão, 2024
- Direção: Kiyoshi Kurosawa